sexta-feira, 2 de junho de 2017

Conto - Ainda Aqui...

Ela está aqui...
Escuto seus passos macios vindo de algum lugar dentro de mim.
Entendo que se esconde nas sombras.
Por quê?
Ela está aqui...
A vejo quando olho no reflexo de meus olhos...
Meu coração se aquece
e sei que não há nenhum medo. 


Ele entrou no quarto pensativo; os móveis ainda estavam lá quietos e olhando para ele como se nada tivesse acontecido, como se aquela manhã fosse idêntica a todas as anteriores. No entanto sabia que não era mais assim, o som surdo de seus passos descalços no piso frio e o choro silencioso que teimava em soluçar em seu coração se misturavam aos soluços de sua mulher no andar de baixo.
Abigail não estava mais entre eles.
“Como era possível isso?” Perguntou sem saber se a pergunta ganhou voz em seus lábios, ou se foi apenas um eco de dentro dele. Entretanto, como em todas as vezes, não houve uma resposta que acalentasse seu peito.As cores que o sorriso dela espalhava nas paredes daquela casa não eram mais vistas ou sentidas como se agora fossem folhas secas que escaparam por uma janela aberta em uma tarde de outono. O vento havia levado embora... Para nunca mais voltar.
Na escrivaninha levemente empoeirada pairavam seus espalhafatosos óculos escuros , seu chaveiro repleto de pequenos bichinhos de plástico coloridos, um telefone em forma de Elvis Presley que ele odiava e que tentara trocar dezenas de vezes sem sucesso e uma folha de jornal com uma linda foto dela em preto e branco. Sempre sorrindo, e com aquele risquinho delicado, que surgia em seu olho esquerdo quando ficava alegre . Ele se permitiu deixar transparecer uma pequena fileira amarela em sua boca, mas que foi quase que imediatamente sufocada pela palavra ENTERRO que, como um tumor, se embreava em uma frase naquela página.
Ela estava morta.
Sua linda filha estava morta.
Olhou mais uma vez para o quarto, passou a mão em um bicho de pelúcia da filha e chorou quando lembrou de sua voz dizendo que não poderia mais ficar com eles, pois já tinha quase quinze anos e que iria doar boa parte deles para a Igreja do Sagrado Coração onde ajudava junto a outras meninas de sua idade arrecadar produtos para um orfanato da cidade. Estava fazendo aquilo, não por receio ou medo do que os amigos iriam dizer. Não. Abigail nunca ligou para o que pensavam dela. Ele, inclusive, invejava isso nela.
A questão era que ela sempre pensava nos outros antes dela. Era seu jeito.
Cabeça dura e tão determinada, no entanto tão doce e afável com todos.
Aquele urso nunca pesou tanto em seus braços e quando olhou para aqueles olhos artificiais e negros como a noite confirmou consigo mesmo que sua filha nunca deixaria de ser sua princesa . Não importava a idade que tivesse ... ou ... onde estivesse.
- Oh, meu Deus, por que ela?
Trancou o quarto, da mesma maneira que ela havia deixado, antes de sofrer aquele acidente de carro. Era seu mundo e deveria ser trancado junto com ela.
No corredor Joana, sua filha caçula, olhava para aquilo tudo sem entender. Sua mente de quatro anos tentava, mas não conseguia imaginar sua irmã não mais ali. A vida e a alegria de Abigail eram muito maiores que um corpo.
- Ela vai voltar, papai. - disse com sua voz cheia de inocência -Ela disse que estava esperando uma ligação muito importante.
Ele a olhou com ternura e quis com todas as forças de sua alma que aquilo fosse verdade. A colocou em seu colo e beijou seu rosto com ternura. Suas lágrimas molharam os cabelos castanhos da menina.
- Sim querida, eu sei.
Mas estava mentindo.

*******
Dez anos se passaram desde aquele dia. Joana era agora uma moça que entrava no segundo grau, sempre vigiada pelos olhos atentos do pai, que agora mostrava uma vasta cabeleira grisalha, apesar de ter pouquíssimas marcas de ação do tempo em seu rosto. Procurava agora não pensar na filha que perdera, mas não conseguia evitar .Ainda mais quando passava em frente a seu quarto, que era aberto apenas uma vez por mês para ser limpo e voltava a ficar trancado.
- Falta um dia pai, se lembra?
- Claro que lembro meu bem, vou deixar você lá antes das dez da manhã. -disse enquanto tomava rápido seu café da manhã.
- Poxa, pai. Assim não dá, o que minhas amigas vão falar ? Todo mundo vai de ônibus, só eu que terei uma “babá”?
- Ei! Que história é essa, por acaso tem vergonha do seu velho?
- Claro que não, mas caramba, já tenho quatorze. Será que não posso ir na cidade vizinha sem meu guarda costas pelo menos uma vez?
- É verdade querido. Jô já não é nenhuma menininha. Por que não? – disse a mãe, uma linda mulher de quarenta e sete anos que se orgulhava de ser mais rápida que o tempo e nunca deixava ninguém ver seus cabelos brancos, que estavam presentes em sua vida desde que tinha vinte. Os olhos de um verde sereno que combinavam perfeitamente com o nariz pequeno e lábios grossos e firmes. Estava pouca coisa acima do peso, mas nada que tirava o encanto que ficava embaixo da longa cabeleira castanho claro.
- Tá bem! Já que não sou mais útil para as minhas mulheres, não posso dizer nada. Posso pelo menos levar a senhorita até a escola ou vai desejar ir de táxi?
Um longo abraço foi a resposta.
No dia seguinte Joana adiantou-se ao sol arrumando suas roupas para o fim de semana que teria com suas amigas e, claro, amigos, em especial, Rafael, um garoto da sala vizinha que mostrou grande interesse pelo seus enormes e bem feitos olhos azuis. Na pequena mala também ia junto a foto em que ela aparecia ao lado da irmã, que agora para ela não era mais que uma linda personagem de contos de fadas. Destas que você tenta achar que nunca existiu, mas que faz bem pensar nela como um exemplo a seguir. Na verdade não se lembrava muito dela, mas vez ou outra acreditava que sonhava com ela e nos sonhos ouvia sua voz doce sempre lhe dando conselhos. Nunca deixou de se arrepender pelos anos em que a odiou em silêncio, por todas as vezes em que pegou os pais chorando nos cantos da casa, ou quando passavam em frente ao quarto dela, que mais parecia um santuário. Mas agora entendia e até ajudava a mãe a limpar o quarto da irmã e por vezes defendeu a falecida irmã quando era falado sobre a ideia de transformar aquele quarto em um espaço para visitas.
“Sem essa! Ninguém mexe nas coisas da Aby.” Ela dizia em alta voz e todos acabavam rindo e esquecendo a ideia.
“Talvez hoje, você já teria me dado sobrinhos...” pensou enquanto colocava seu biquíni na mala sem deixar de olhar para a foto. “Como você era linda, mana.”
No quarto ao lado, seu pai lutava contra o forte sono que sentia, mas o toque delicado da mulher, junto a um sorriso doce, foi o suficiente para manter-se desperto. Na cadeira da penteadeira estava sua bermuda, colocada na noite anterior, junto a um par de meias e seus tênis.
- Por que eles tem que sair tão cedo? – Perguntou enquanto olhava para o espelho coçando a barba que nascera durante a noite.
- Ora querido, são três horas de viagem, você não espera que num calor desse eles fiquem dentro de um ônibus quente. Querem só aproveitar o frescor da manhã.
- É. Nós poderíamos ir também sabia?
A mulher agora tocava em suas costas beijando levemente sua orelha esquerda.
- E perder um chance de ficar sozinhos? Nunca.
Um sorriso amarelo e malicioso surgiu no rosto dele olhando os olhos da esposa no reflexo do espelho. Afinal de contas há anos eles não curtiam um momento só deles, era um final de semana inteiro sozinhos, e ele sabia muito bem que a mulher já devia ter feito planos. Desde que a filha morrera nunca mais haviam se dado ao luxo de permitir serem vivos e fazerem algumas loucuras, mesmo que controladas.
- Vamos, termine logo. Eu vou descer e preparar um café da manhã reforçado para vocês.
******
O rosto sorridente da filha dentro do ônibus, sendo abraçada e pelas amigas foi o suficiente para o pai. Ele tinha certeza que ela estaria feliz naquele final de semana, entretanto só ligou o carro quando o ônibus partiu.
****
A pedido da esposa parou em um supermercado para comprar algumas coisas para o jantar especial que teriam naquela noite. Comprou também um bom vinho, algumas frutas e chocolate alemão, para a confecção de um doce que sua esposa fazia muito bem e que, por opinião dele, fazia muito bem antes e depois do amor.
Em casa ela preparava uma torta gelada que estaria à espera da filha. Adorava morder os morangos congelados mesmo sabendo que quase não tinha gosto. Olhou para o relógio na parede e viu que pela hora a filha já devia estar fora da cidade. Pensou no seu rosto sorridente e em como ela era parecida com sua mais velha.
O som do carro estacionando na garagem fez com quase por reflexo retirasse o avental e arrumasse o cabelo que, diga-se de passagem, estava sempre arrumado. Ele entrou pela porta dos fundos que dava para a cozinha, trazendo três sacos plásticos de compras. Colocou-as sobre a mesa e foi recebido com um longo beijo.
******
A noite chegou recheada de carícias de um dia inteiro de mimos e promessas de amor renovadas e banhadas com muito suor. Ele, olhou para seu reflexo procurando gordura em sua barriga e uma calvície que não existia. Na verdade procurava uma explicação mais física para o que considerou uma péssima performace durante aquela tarde. A esposa entretanto não parecia decepcionada, tanto que colocava sua camisola vermelha na intenção da hora de dormir ser bem depois da madrugada.
Subitamente o som do telefone disparou de seu criado. Ela atendeu com um belo sorriso no rosto, que desapareceu pelo que ouviu.
O aparelho caiu de sua mão e a única coisa que saiu, e ainda assim rouco, quase sufocado, foi o nome do marido.
******
Na delegacia o delegado explicava, com certa dificuldade para o grupo de pais nervosos e entre estes estava o de Joana.
- Por favor senhores, ainda não temos nenhum nome, foram encontrados somente seis crianças, que já estão no hospital, os nomes delas estão em uma lista na recepção.
E as outras – gritava um pai histérico – Pelo amor de Deus, onde está meu filho? Ele só tem treze anos.
- Por enquanto não temos informações. O que podemos dizer é o que vocês já sabem, o motorista do ônibus recebeu uma fechada na estrada e caiu da ponte Teixeira Costa dentro do rio – disse enquanto uma mulher, com rosto perturbado, entregava uma folha de papel para ele. Olhou para a mesma e ficou perplexo – Senhores, acaba de chegar a lista das
O pai de Joana viu seu mundo cair em seus pés enquanto o delegado dizia os nomes das crianças mortas. Sua mulher estava com os olhos distantes como se procurasse algo no espaço vazio que pudesse lhe acalmar.
- Não.Não. Não.Não. Não.Não. Não.Não. Não.Não. - Era tudo que saia de sua boca sem quase respirar.
O nome de Joana não estava na lista.
- Por favor, voltem para suas casas, entraremos em contato, tão logo tenhamos mais informações. Peço por gentileza para não irem ao rio, pois poderão atrapalhar a ação dos bombeiros. Já temos seu contatos e iremos ligar a cada novidade.
primeiras vítimas fatais. São oito nomes.
*******
Cada passo parecia pesar toneladas. A chave parecia não querer abrir a porta de sua casa.
Tudo de novo. Perdera sua outra filha. Não, ainda não, ela não foi encontrada. Mas onde ela poderia estar?
Estava frio naquela noite, ela não sabia nadar.
- Deus! Eu matei minha filha. -disse para a esposa. -Eu a deveria ter levado.
- Não. Não diga isso, querido. Joana é forte, ela está bem.
A sala agora parecia ter o dobro do tamanho por conta da solidão. Todos os sentimentos que sentiram com Abigail estavam lá novamente destruindo suas almas, envelhecendo seus corpos e matando suas esperanças.
Joana, era a única coisa que queriam naquele momento. Nisso ouvem o telefone tocar. Ele se antecipa à esposa e pega o
aparelho que ficava ao lado da TV. Entretanto mesmo tendo atendido o toque continuava.
- Não é aqui.
O som vinha de cima, mas não havia lógica, pois era apenas uma linha para a casa toda. E o som de ocupado do aparelho que ele segurava provava que não era possível aquilo.
O som ficava mais forte no meio do silêncio que se fez na casa.
- Vem do quarto de Abigail. – disse a mulher segurando trêmula no ombro do marido, que também tremia muito.
- Não pode ser, eu mesmo desliguei o telefone dela há mais de oito anos.
Subiram as escadas pé ante pé até chegarem na porta do quarto da filha morta. O pai destrancou a porta, torceu a maçaneta devagar e os dois entraram e ligaram a luz do quarto. No criado mudo ao lado da cama, o telefone em forma de Elvis Presley tocava sem parar, fazendo as pernas do boneco simular uma dança. Ele olhou para a parede ao lado e pode confirmar que o aparelho não estava ligado a nada, mas mesmo assim teve coragem de atender e pateticamente disse:
- Alô.
- Pai, sou eu Joana, por favor venha me buscar, eu estou com frio e com medo – disse a
- Filha onde você está? - perguntou ainda não acreditando naquilo tudo. - Diz que o papai vai te buscar. -Nisso, abriu a gaveta do criado e tirou um pedaço de papel e uma caneta rosa e anotou as informações dadas pela filha.
- Eu estou indo filha. Papai vai te buscar – disse tranquilizando a filha, foi quando ele ouviu
- Oi, papai. Eu vou cuidar dela até você chegar, não posso ficar aqui muito tempo, diz para a mamãe que eu amo muito vocês.
Uma lágrima descia pelo rosto do homem.
- Eu também amo muito você, querida.
Nisso todo o som desapareceu, deixando aquele patético aparelho em sua condição verdadeira.PAY Former psychiatric hospital.
uma outra voz de mulher que parecia estar com sua filha. – Quem está aí com você, meu amor?
filha chorando muito.
Os dois se olharam com alegria , desceram as escadas e antes de entrarem no carro para buscar a filha olharam para a janela do quarto de Abigail que ficara com a luz acesa. E sentiram que alguém olhava para eles. Uma forte lufada de vento dobrou os galhos na arvore que ficava na frente da casa e poderam ver que algumas folhas entraram pela janela.
Eles acenaram sem saber o porquê e sem nenhum medo.
A filha estava esperando por eles.
Conheça o autor
Nando Alves
nandoalvesartes@gmail.com

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