sábado, 27 de maio de 2017

Conto- Identidade

No início era apenas a escuridão opaca. Aos poucos foi dando lugar a uma luz esbranquiçada somada à sons disformes e salpicos cinza, azul e laranja aqui e ali que ao seu tempo deram forma a uma parede de metal encardida, dois bancos e uma mesa enferrujados em um canto da sala. Uma tela de menos de trinta polegadas pendia muda e meio torta em uma outra parede transmitindo para ninguém um filme clássico. Era o seu mundo que começava a ganhar forma.


Com muito esforço conseguiu sentar em sua cama. Sair da posição horizontal fez com que um gosto amargo e ferroso viesse à tona em sua boca resgatando uma lembrança repleta de sombras sem rostos e vozes desconexas que participaram da noite anterior. As pernas formigavam e mal conseguia sentir o tato nos pés e mãos. Tossir em um espasmo seco o lembrou de que tinha uma voz. Colocou as mãos sobre os olhos e viu que a velha e conhecida dor de cabeça e aquela sede terrível estavam chegando assim como a sua consciência.
Na mesa, colocadas uma do lado da outra estavam duas garrafas de rótulos diferentes contendo vodca de qualidade duvidosa. Uma estava vazia e a outra com um pouco mais de três dedos.
Levantou-se da cama com esforço. Seu corpo quase caiu com o rodopio que todo o cômodo deu. Segurou-se comicamente na cadeira até que tudo parecesse o mais normal possível a seus olhos; cuspiu uma pasta verde no carpete manchado aos seus pés e de um único gole terminou o que restava da garrafa. Respirou fundo para acumular forças para se pôr de pé. Com passos curtos e trêmulos encontrou o caminho até o cubículo que chamava de banheiro. Apertou um botão encardido, que em alguma época fora vermelho, e de um orifício acima da pia jorrou uma substância azulada na qual, com as mãos em forma de concha, molhou com violência seu rosto. No espelho na parede de metal viu um rosto vazio escondendo olhos castanhos sonolentos e uma boca semiaberta mostrando dentes amarelos perfeitos. O líquido azulado tomava uma tonalidade marrom onde limpava o resultado da noite anterior.
Olhou para o lado e pôde constatar a   presença de uma banheira em alumínio e cobre com tantas manchas que poderia, sozinhas, contar a história daquele lugar. Havia meses que não a usava e não seria agora que o faria.  Com dores fortes na cabeça tirou a pouca roupa que usava   e se pôs embaixo de uma ducha circular que também jorrou um líquido azulado e levemente doce, que quando ingerido por ele, sem querer, o fez vomitar tudo que comera na noite anterior. O que, para sua sorte, não era muito.
Agachou-se no piso molhado do banheiro e por alguns segundos acompanhou a descida do que estava em seu estômago descer pelo ralo. Um sorriso malicioso surgiu em seu rosto e o fez pensar.  
“Vai na frente! Daqui alguns anos encontro com você.”   
Duas horas depois um novo homem saía do lavatório.  Enrolado em uma toalha, mostrava certa beleza: alto, de corpo atlético, apesar da pequena barriga saliente, cabelos negros e lisos, que insistiam em cair sobre seus olhos, a barba feita mostrava um queixo com um pequeno furo.                            
Sob a cadeira descansava uma camisa branca com uma pequena mancha de molho verde  na lapela, nada muito visível, uma calça azul marinho e um sobre tudo acinzentado, que com certeza já fora preto um dia. Embaixo da cadeira havia um par de sapatos relativamente bem conservado e por dentro destes uma par de meia há muito não lavado e, com certeza, muito usado nas duas últimas semanas.
Em dez minutos ele já estava vestido, procurou durante alguns minutos a carteira de cigarros que escondeu de si mesmo, na tola tentativa de parar de fumar, não pelo perigo     que causava ao seu corpo, mas pelo preço   absurdo de cada pacote. Encontrou-a dentro de uma velha jaqueta que não usava há meses e que estava pendurada atrás da porta.
“Devo parar de confiar em mim.” Pensou enquanto sorria.
Acendeu e deu uma boa tragada, soprando a fumaça para o alto na esperança de não impregnar sua roupa com o cheiro.  Destravou as cinco trancas da enorme porta de metal do quarto e banheiro de um edifício de cento e quatro andares onde morava, contendo em cada andar, sessenta e dois apartamentos exatamente iguais ao dele.
Lá fora o céu vermelho e poluído o impedia de ver o sol, uma das  quatro  coisas  que  o  fazia se arrepender de ter saído  da  Terra,  apesar  de  saber que seu planeta natal não estava tão diferente, desde que a cúpula que foi criada para substituir a camada de ozônio dava visão de um céu limpo somente em algumas regiões, onde com certeza viviam os que podiam pagar por isso.
O amigo, como em todos os dias, estacionou seu carro, um Bashir 76 amarelo, caindo aos pedaços.                       
- Diga aí, companheiro!  Pronto para mais um lindo dia nesta cidade maravilhosa?  – disse o rapaz, um negro muito magro, de olhos esverdeados e sem um fio de cabelo, enquanto batia com carinho no capô do carro.


- Eu adoro suas piadas, Ed. Tanto que fico louco para enfiar cada uma em sua boca de novo. – respondeu enquanto entrava no carro.
- Ei, calma aí! Agora é crime tentar levantar a moral de merda de um amigo? Só estava querendo tirar esta tristeza de sua cara. Se soubesse, tinha ficado calado.
- Sei. – disse com um ar cínico. - O negócio é comigo, dormi super mal esta noite, por isso economiza este seu veneno, que hoje ele não terá efeito em meus ouvidos.
- Fiquei   sabendo.   O   Fred, aquele   que se gaba o tempo todo de ter nascido em Europa, disse que você tomou todas a noite passada. Cara, você tem coragem de encher a cara com bebida feita na Terra com a gravidade daqui? Já vi um cara morrer fazendo isso. - disse enquanto levantava voou com seu Bashir com um som assustador, mas que já acostumara, vindo do motor. - Não que eu goste ou me importe com você, mas quando me acostumo com as coisas e pessoas, não curto muito mudanças.  Mas, quer saber? Deixa para lá. A vida miserável é sua e temos muitas coisas para nos preocuparmos hoje.
- Do que você está falando ,Ed? – perguntou enquanto apagava o resto do cigarro na palma calejada de sua mão.
- Não está sabendo?  As Zonas Habitacionais Um e Dois aderiram ao movimento separatista e a conversa que está voando é que possivelmente vão haver demissões na construção civil.  O Phester   já está com a lista, e pelo jeito tem muita gente graúda nela.     
- Espera, espera, espera.  Se estas áreas entraram nessa, é quase certeza que um conflito vai detonar. Caramba! Isso vai dar merda. O governo da Terra com certeza já deve estar enviando tropas para cá.
- Você não sabe nem a metade. – disse o amigo pegando um tablet abrindo em um vídeo. – Veja e chore, meu amigo.       
Na mesma mostrava Roberto Ansium, uma das forças dominantes de Marte, segurando uma antiga   adaga   sobre   a   palma esquerda, indagando se o povo marciano queria continuar naquela vida que estavam, enviando tudo que produziam para a Terra, e continuar comendo as sobras, podiam agir como aquela mão, mas, caso contrário, se quisessem acabar com aquela injustiça, era muito simples, bastava ficar no lugar da adaga e lutar. Dava para ver a baba escorrendo da boca dele. A coisa era séria. Ele concluía dizendo com olhos cheios de fúria. “Vamos mostrar para aqueles infelizes da Terra quem realmente manda nos nossos desejos e vontades. Vamos mostrar a eles quem é realmente o povo de Marte.”
Ed deu um grunhido de descontentamento enquanto o amigo olhava para a ferida que auto infringiu em sua mão pensando como certas coisas poderiam doer mais.


**********
- Eu chamaria tal comportamento simplesmente de traição – disse a voz idosa e cansada pelas constantes baforadas do charuto. Enquanto bebericava de um raríssimo e caro suco de laranja e olhava do alto do luxuoso restaurante, a cidade abaixo. - Ele mesmo, uma pessoa da Terra, indo contra seus princípios. Um verdadeiro ultraje.
- Não sei se posso concordar com você, meu caro Alfredo. Já li muita coisa a respeito de paixão por lugares conquistados. A história humana é cheia de exemplos. Quem sabe o nosso “estimado” senador não esteja sofrendo desse mal?                          
- Pode ser meu caro, pode ser. O que acha, minha querida?                               
Os olhos azuis e celestes de sua esposa eram tão belos como o rosto que os emolduravam, as mãos delicadamente embaixo do queixo fino não eram para marcar reflexão diante do assunto maçante e sem objetividade, eram simplesmente para segurar a cabeça de um provável cochilo fora de hora.
- Meu bem? Ouviu o que eu disse?
- Há! Claro querido, concordo totalmente com tudo que disse - mentiu. No entanto os olhos tremeram instantaneamente, pois concordara sem ao menos ouvir a conversa. Tinha medo do marido, e ter dito algo que o constrangesse poderia ser muito ruim para ela. No entanto, lembrou da vida que tivera antes daquilo. Vivendo em um cubículo minúsculo divido com mais quatro pessoas e trabalhando com mineração durante todo o dia. Encontrar um velho e herdeiro de uma das primeiras famílias, que a quis como esposa, foi um golpe de sorte. Sabia que para muitos não passava de um brinquedo nas mãos dele. Mas preferia aquilo à voltar para as minas novamente. - Querido, eu preciso ir ao toalete, você poderia me dar licença?
- Claro, meu bem – disse sem ao menos olhar para ela – Estarei aqui mesmo.
O restaurante era enorme, no entanto foi fácil para ela encontrar o toalete, já que estivera ali outras vezes em ocasiões tão ou mais desagradáveis que aquela. Entrou no recinto muito limpo e enfeitado com todos os tipos de apetrechos mais modernos, até mesmo o lavabo - novidade em Marte a menos de duas semanas – Em um dos boxes encontrou o que queria: solidão.  Trancou a porta, despiu-se e sentou-se no sanitário. Urinou com um prazer indizível, já que desde que saíra de casa estava com esta vontade. Entretanto, sabia que não era muito agradável, principalmente para ela, atrasar os planos do marido, não importando o quanto fosse importante ou fundamental para ela.            Terminando, apertou um pequeno botão amarelo a sua direita, que acionou uma baforada de vapor frio de dentro do sanitário, que até hoje não conseguira se acostumar. Adorava usar o bom e velho papel higiênico, material de luxo no planeta vendido por uma fortuna a quem pudesse pagar, e que vez ou outra usava, graças a um dos gracejos do marido em troca de novidades sexuais.                      
Ao sair do box, viu uma mulher, que aparentava menos de vinte e cinco anos, maquiada para aparentar mais idade. Os 
Os cabelos dourados cobriam um de seus olhos; os lábios finos e delicados estavam completamente camuflados com aquela tinta vermelha. Os olhos e rosto com uma maquiagem perfeita que lembrava em muito as antigas concubinas dos arquivos de história da Terra.
Então a mágica aconteceu.
E não era a primeira vez que ela vira aquilo.
No reflexo do espelho os olhos verdes daquela mulher mudaram para um castanho amadeirado e seus cabelos dourados foram tornando-se mais escuros a partir da raiz até ficarem totalmente negros. A jovem deu um sorriso vazio para o resultado. Olhou-se por mais alguns segundos e saiu do lugar.
Aquelas “bonecas” sexuais eram a novidade mais cara de Marte. Presente das grandes corporações da Terra aos que trabalhavam direito e mandavam mais e mais minérios para a construção de cargueiros que agora estavam se aventurando até mesmo fora de nosso Sistema Solar.  Máquinas de prazer que ao seu tempo fariam mulheres e homens que eram escolhidos pelos ricos serem descartados em pouco tempo. Muitas vezes viu o próprio marido admirando aqueles “presentes” que seus amigos ganharam, mas agradecia por ele ainda dizer que gostava de algo real. Porém quando dizia a frase “quem sabe um dia...” sentia um frio tão imenso na espinha e o medo tomava de conta de seu corpo.             
Retocou aquela máscara, que chamava de maquiagem, em frente ao espelho e viu no reflexo do mesmo duas senhoras que haviam entrado ali e que a olhavam com tanta raiva como se ela fosse a culpada delas não serem mais jovens e atraentes. Mas uma vez se fez de desentendida e com um sorriso cínico, mas convincente, as cumprimentou; elas, com mais cinismo ainda, responderam o sorriso com outro. Ao fechar a porta ela sabia que as alfinetadas sobre sua vida seriam mortais, afinal a “doce” e “fina” senhora Lee era o centro de todas as atenções na “nobreza” marciana.
Nesses momentos tudo   que ela desejava era desaparecer  no universo junto às estrelas cadentes que via a noite, porém ao lembrar qual seria seu destino colocava na gaveta de sua alma todos os seus lampejos de coragem e sonhos.
Entrou novamente no grande salão, indo em direção à mesa onde se encontrava seu marido, o amigo e sua esposa. Enquanto andava, todos os olhos encontravam um alvo em seu corpo, alguns disparando intrigas, outros desprezos, mas na grande maioria desejo.
-  Ainda bem que retornou meu bem, eu e  Willian  falávamos  sobre  a  provável  guerra  entre a Terra e Marte. O que acha disso?                           
- Engraçado. – disse ela com um pequeno sorriso nos lábios, enquanto sentava à mesa. -  Meu  pai me deu um livro quando eu era criança chamado Guerras dos Mundos, o livro foi escrito no início do século XX por um escritor que não lembro mais o nome...
- H.G Wells –interferiu Willian se interessando pelo o que sairia da boca daquela jovem.
- Sim, é este o nome dele. Bem neste livro falava exatamente da guerra entre o povo da Terra e os marcianos. Só que nela existia pelo menos a desculpa de serem alienígenas. Será que não é isto que estamos nos tornando? Alienígenas, seres diferentes? Perdemos nossas origens quando a única coisa que vale é o interesse e o dinheiro? Sabe, ainda bem que este senhor Wells não nasceu nos tempos de hoje, pois que lindo e maravilhoso livro eu deixaria de ler.- Ela olhou com interesse para a grande janela .- E engraçado, pois aqui estamos nós, aos pés de uma guerra por um enorme pedaço de rocha. É realmente cômico.
Silêncio.
- Concordo com você, minha cara. Menos na parte no que diz respeito ao que falou sobre Marte. Nós estamos na maior jazida de minério BARCON do sistema – disse Willian, tentando salvar a menina de uma situação pior, arriscando-se o máximo possível não deixar transparecer isso, pois estava sendo muito bem observado pelos olhos de sua esposa e do amigo que começava a ficar claramente incomodado.
- Está muito espirituosa hoje, meu bem. O que será? -disse o marido com um transparente falso sorriso; e ela sabia muito bem o que significava aquilo.
Naquele momento queria que aquele almoço durasse por toda a eternidade e não tivesse uma casa para retornar.
- Eu só queria tirar alguns sorrisos, querido.  -Mentiu novamente.


**************
- Dane-se com suas brincadeiras. Cara, isso é sério. Nós não estamos preparados para uma maldita guerra. – disse enquanto desligava a imagem esverdeada do tablet.
-Relaxa, cara. Eu não acho que isso vai acontecer, mas te digo uma coisa, se meu nome estiver naquela droga de lista, vou te falar. - disse Ed dando um murro no volante. -Hoje mesmo me alisto no exército marciano e começo a apoiar este senador pirado.
- Eu acho que você está perdendo o juízo...
- Nada! Eu tenho duas bocas para alimentar e não vou querer ver minha filha morrendo asfixiada ou doente por conta da falta de ar de boa qualidade. Por falar nisso, viu para quanto foi o preço dos filtros este mês?  Tudo por conta do maldito medo de um conflito. Esses desgraçados não perdem tempo. Quem diria que esta conversa que começou há seis anos iria ganhar tanta moral como hoje.
- Cara, eu não ligo a mínima para estes bostas que comem dinheiro, mas me preocupo sim em ter que voltar para a Terra– disse enquanto procurava outro cigarro no bolso. - Aquele lugar fede.
- Não reclama, cara. É ruim, mas é uma forma de escapar. Ter cidadania da Terra não é de todo ruim, pelo menos você pode morar na Lua. Ouvi dizer que está cada vez melhor. Eu e minha família nascemos neste buraco e temos que nos virar da melhor maneira. Mas te digo uma coisa, se você tiver que ir, a hora é agora. Logo, logo eles irão proibir idas e vindas para lá.  
Logo à frente deles, um enorme túnel dividia as zonas de subúrbio dos grandes centros urbanizados. Oito portas controladas por diversos seguranças controlavam o túnel. Após mostrarem suas credenciais em todas as guaritas tiveram permissão para entrar.
O contraste era absurdo. Pareciam estar saindo de um mundo e entrando em outro; os enormes edifícios eram monumentais e de uma beleza descomunal. As pessoas eram bem vestidas e ninguém usava filtros obrigatórios nos narizes, pois o ar era realmente puro e tinham água limpa e cristalina, que jorrava por vários chafarizes espalhados pelo setor, alguns com estátuas de mulheres e crianças nuas e outros com peixes e outras criaturas, que na grande maioria, estavam extintos há centenas de anos. O céu emulava o da Terra, pois era azul graças a projetores holográficos gigantescos espalhados por diversos pontos da cúpula que, diferente dos demais setores, não era próximo ao solo e ficava há quilômetros de altura. O suficiente para as grandes aeronaves, ou mesmo os gigantescos cargueiros que viajavam para a Terra e Europa, trafegarem.
Era o mais próximo de um paraíso que alguém dos baixos setores poderiam imaginar, no entanto tudo ali era tão intangível que até o conceito de sonhar em morar em um lugar daqueles era engraçado e assunto de chacota entre eles. A própria condição deles ali era temporária. Pelo menos até o término de mais um dos bolsões de ligamento, que daria início ao isolamento daquela área para a unificação com o setor Zeus, que faria tudo aquilo, já magnífico, em algo simples.
Sete anos e milhares de empregados, para construir mais de trezentos quilômetros quadrados em prédios e lojas para os filhos e novos ricos, que deveriam mudar para Marte nos próximos meses. Novas jazidas de BARCON tinham sido encontradas e eram bem maiores do que as anteriores. Trilhões de créditos enterrados esperando por mãos ambiciosas.
No entanto, depois que os mais experientes mineiros foram em busca de um futuro em outras luas de Júpiter, o trabalho e a substituição gradativa por máquinas no trabalho com o BARCON fez com que o número de desempregados e residentes morrendo por contaminação, simplesmente por não terem como pagar seus filtros, e o aumento da criminalidade, acabou inflamando e dando força aos grupos separatistas. Marte tinha um exército próprio e diversas naves de combate dentro e fora do planeta, no entanto sempre fieis ao seu colonizador: A Terra. Ter a simpatia de homens ricos, inclusive das primeiras famílias e agora um senador, poderia mudar um pouco a ordem natural.     
Passando em frente a um edifício restaurante viu um velho com a ajuda de uma segurança colocar à força uma jovem muito bonita dentro do seu veículo.  A mulher não mostrava resistência ao entrar, mas assim mesmo o velho a achincalhava.  Por um breve momento ela olhou para aquela lata velha amarela que passava na rua e os olhos dos dois se cruzaram. Ele pareceu não entender e evitou comentar com o amigo que estava preocupado em estacionar em um lugar mais tranquilo, mas ver os olhos marejados daquela mulher tão bem vestida fez com que sua vida miserável parecesse menos cruel e pode, mesmo que por um tempo ínfimo, sentir pena dela.       
- Pobre coitada – deixou escapar baixo.
- Como? – disse Ed sem olhar para ele.
- Nada, esquece.


*************
Os olhos tranquilos do homem naquele veículo velho, chamaram sua atenção o suficiente para que ela não ouvisse os gritos vindos do marido nervoso. O rosto dele tinha algo confortador e ao mesmo tempo nostálgico. Algo que a fez lembrar de um tempo além do que vivera mergulhada na escuridão que a vida ruim daquele lugar podia fazer a uma menina. Talvez tenha sido só um momento de fragilidade de seu espírito que conseguiu ver algo de bom em alguém que claramente não era mais de seu mundo cor de rosa e que frequentemente tornava-se mais amargo. Era um ninguém. Um número que insistia em ter um nome. Mas a realidade voltou como um soco em seu estômago. O homem foi embora e agora sua única preocupação era com o que a motorista, que insistia em olhar somente para frente, mas por ordem do que vontade, iria pensar vendo aquela situação. Na verdade não ligava muito para o que o marido falava ou deixava de falar. Aprendera isso no primeiro ano ao lado do ser tão desprezível como era aquele homem. No entanto a vergonha e a humilhação diante das outras pessoas ainda era algo que a feria muito. Cada nome era como pregos que saiam daquela boca murcha e entrava em seu peito. E ela não podia fazer nada e não ser conter-se.
- Olhe para mim quando eu estiver falando com você, sua imbecil! Aquilo   era coisa de dizer numa mesa para um dos homens mais influentes neste planeta? Eu quase tive um ataque cardíaco com toda aquela merda que saiu de sua boca.
- Eu só disse o que veio a minha cabeça, nada mais. - disse com uma pequena lágrima formando no olho direito. - Não queria parecer uma idiota. Pensei que fosse gostar de mostrar que não é casado com uma droga de androide sem alma.
- Pois da próxima vez fique com a cabeça fazia, diga somente o que eu lhe permitir dizer. Não me importo nem um pouco com uma esposa calada. Se eu quisesse uma mulher para se meter em minha vida e em meus negócios não iria buscar uma naquele lixo do setor H. Se ponha em seu lugar ou vai acabar sendo substituída por uma destas drogas de robôs.
Algo cresceu em sua garganta. Um grito que lhe salvaria daquelas ofensas, mas quem ouviria seu grito que não ela? Era um mundo novo onde comportamentos como aquele extintos há séculos eram fortes ali. Eles eram os donos. Homens e mulheres como ela eram objetos nas mãos deles. Eram como sentiam seu poder. Ela permaneceu calada, pois sabia que ouviria muito naquele dia e possivelmente seria castigada de formas que dariam mais prazer a uma criatura impotente como aquela, no entanto algo nela a tranquilizava, talvez o gosto daquele grito, ou saber que não era uma boneca de plástico, que havia vida e força, que mesmo eclipsada por tanta vergonha e medo ainda se faziam ouvir do fundo daquele oceano de tristeza dentro dela. Talvez foi aquele olhar tão simples para com ela. Um olhar de empatia.
Um olhar humano.
Sim... Por um segundo ela se sentiu humana novamente. Que sentimento reconfortante, mesmo que numa dose tão pequena.
Subitamente algo chamou a atenção da motorista que fez com que parasse o veículo bruscamente.
- O que foi, Moira. Por que paramos? – perguntou o velho com raiva.
- Tem algo acontecendo lá fora, senhor. Todos estão parando.
- Mas isto é um insulto! Vou tomar satisfação com o próprio governador quando souber o que está ocorrendo.
Do veículo ela pôde ver um grupo de homens fortemente armados tirando as pessoas de dentro dos carros. As que tentavam resistir eram tratadas rudemente independentes de seus estado social. Ela não intendia o que estava havendo, mas pode ver entre estas pessoas tiradas de seus carros o homem que vira há pouco. Ele a olhava fixamente enquanto era colocado em uma fila.


*********
O caos estava formado. Eram centenas de soldados e cópias androides fortemente armados, chegando em naves blindadas e pousando, destruindo as magníficas estátuas que enfeitavam o lugar, mas que naquele momento atrapalhavam suas áreas de pouso.
- Formem uma fila aqui, os moradores das zonas fechadas, e outra aqui, os moradores do centro. – disse sem entonação e sem expressão na sua voz mecânica, um dos androides que carregava uma arma de projéteis M-66.      
- Desculpe, oficial. O que está acontecendo? – perguntou se afastando de Ed que tinha como preocupação o bem estar de seu velho Bashir.
Antes mesmo que um dos soldados pudesse responder. Uma série de explosões foram ouvidas. Era os refletores holográficos que estavam sendo desligados   revelando a face vermelha do céu marciano, onde dezenas de naves sobrevoavam a cúpula. Ele reconheceu todas como de Marte.



- Cidadão, o estado Marciano acaba de declarar sua independência e guerra contra a Terra. Estamos apenas vistoriando quem está aqui a mais de cinco anos. Por isso, por favor, todos retirem seus documentos para esta confirmação.
Mais atrás ele pôde ver a jovem. Parecia triste, mas não ligava para o que o marido falava. Só o olhava. Novas explosões e gritos eram ouvidos por vozes que nunca tiveram que fazer isso.
Um cheiro forte de borracha queimada tomou conta de suas narinas que nem mesmo seus filtros conseguiram eliminar.
Fumaça... Medo ... O desconhecido.           
Tudo poderia acontecer naquele momento. Da mesma maneira que ele estava vivo agora, amanhã poderia estar morto   junto a milhares de outros, pois sabia que este era o destino daqueles que escolhessem um dos lados. Entretanto, mesmo com tudo aquilo, não conseguia para de olhar para aquela jovem.
Estava com medo, mas se sentia reconfortado com ela.
Ao lado dele havia um canteiro com algumas flores, que foram geneticamente alteradas para sobreviverem ali. Entre elas dois girassóis.
A moça arriscando, sem a menor preocupação sujar ou rasgar seu caro vestido, ziguezagueou  por entre os carros e pessoas. Ele arriscou dois passos seguidos por mais outros em direção a ela, sem ao menos saber o que dizer.
Eles então ficaram um de frente ao outro e sem nunca antes se virem ou mesmo falarem se abraçaram entre   o amontoado de carros barulhentos, tiros de alerta e motoristas nervosos.       
“Pois era isso que seres humanos fazem.” – Pensou ela.    
                                                        
No canteiro um dos girassóis voltara com um pouco de esforço seu lindo botão para o Sol que estava lindo naquele dia. Finalmente podia ir em busca de seu propósito ...De sua identidade.

Escrito por Nando Alves






                                          Trilha sonora para este conto !

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